Río 2016, maravillosa para pocos – Por Miguel Martins, Rodrigo Martins, y Marsílea Gombata

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Los conceptos vertidos en esta sección no reflejan necesariamente la línea editorial de Nodal. Consideramos importante que se conozcan porque contribuyen a tener una visión integral de la región.

Rio 2016, maravilhosa para poucos

Em meio à mais grave crise fiscal de sua história recente, com os serviços de saúde, educação e segurança pública ameaçados pelo rombo de 19 bilhões de reais nas finanças estaduais, o Rio de Janeiro confia em soluções emergenciais para evitar o fiasco da primeira Olímpiada em solo sul-americano. Os turistas estão amedrontados.

Mesmo com soldados a empunhar fuzis pelos cartões-postais da cidade, três suecos foram levados para uma favela do Complexo de Lins em um sequestro relâmpago. A recepção carioca também assombra os atletas. Após desembarcar no aeroporto do Galeão, o time de basquete da China viu-se em meio a um tiroteio, quando o ônibus da equipe trafegava entre as Linhas Vermelha e Amarela, nas proximidades das comunidades da Maré.

Com uma média de 16 assassinatos por dia no estado, a violência não é a única preocupação. Ao adentrar a Vila Olímpica, local de repouso dos atletas, várias delegações estrangeiras encontraram problemas elétricos e hidráulicos nos dormitórios, além de reportarem o furto de laptops e roupas.

A delegação australiana abandonou as instalações e só retornou após o prefeito do Rio, Eduardo Paes, concluir obras de reparo. “Estamos quase botando um canguru na frente do prédio deles, para se sentirem em casa”, disse o peemedebista. A reação à descompostura foi imediata: “Não precisamos de cangurus, e sim de encanadores”.

O improviso saiu caro. Auditores do Ministério do Trabalho e Emprego flagraram operários da Vila Olímpica sem carteira assinada e enfrentando jornadas exaustivas, de até 23 horas. O comitê organizador foi multado em 315 mil reais.

Não bastasse, algumas instalações esportivas correm o risco de ficar prontas com os jogos em andamento. Uma ressaca danificou a principal rampa da Marina da Glória, que abrigará a disputa da Vela. “Não podemos fazer nada contra as obras da natureza”, esquivou-se Carlos Arthur Nuzman, chefe do Comitê Olímpico Brasileiro, na expectativa da parvoíce de quem o ouve.

Meses antes, a ciclovia Tim Maia, na zona sul, também desabou por causa de uma ressaca. A Polícia Civil indiciou 14 indivíduos apontados como responsáveis pelo projeto. Duas pessoas morreram no acidente.

As sucessivas demonstrações de incompetência são, porém, a feição menos preocupante do projeto olímpico, um bilionário negócio a mudar a configuração espacial do Rio. Os beneficiários, como de hábito, são poucos.

Uma minoria enche os bolsos com vultosos contratos de marketing e a especulação imobiliária, enquanto a população carioca continua à espera de um legado substantivo para a cidade.

Uma espera longa, que remonta aos Jogos Pan-Americanos de 2007. Orçado em 390 milhões de reais, o megaevento custou aos cofres públicos a exorbitante cifra de 3,3 bilhões, e até hoje processos por desvios e superfaturamento correm nos tribunais.

Uma das promessas não cumpridas, tanto no Pan quanto na Rio 2016, é a despoluição da Baía de Guanabara. Recentemente, o jornal The New York Times aconselhou os atletas que vão competir nas águas a “manter a boca fechada”. Melhor, talvez, usar máscaras contra gases.

Construído para o Pan, o Estádio do Engenhão custou 396 milhões de reais, em decorrência de uma série de aditivos. O gasto quase quatro vezes superior ao orçamento inicial não assegurou a qualidade da edificação. Em 2013, foi interditado, pois a cobertura do estádio ameaçava ruir ao sabor de ventos fortes. A reforma para a Olimpíada custou mais 52 milhões.

Os exemplos de desperdício não param por aí. O Velódromo de 14 milhões de reais usado no Pan foi desativado. Subutilizado após o fim da competição, o Parque Aquático Maria Lenk também precisou passar por obras de adaptação, e não abrigará as provas de natação.

O geógrafo norte-americano Christopher Gaffney morou no Brasil entre 2009 e 2015 para estudar os impactos da realização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos. Segundo o especialista, o subaproveitamento dos equipamentos esportivos faz parte da lógica dos grandes eventos.

Estranha, porém, o fato de o Brasil confiar a organização da Rio 2016 às mesmas pessoas que cuidaram do fracassado projeto do Pan. “À época, Paes era o secretário estadual do Esporte e Lazer e Nuzman, chefe do comitê organizador”, observa. “Fazer negócio com desperdício é sempre melhor para quem mama nos cofres públicos.”

Nuzman está à frente do COB desde 1995. Formado em Direito, ele foi jogador da seleção brasileira de vôlei de 1962 a 1968. Ao despedir-se das quadras, passou a se dedicar a uma tarefa na qual atua com mais desenvoltura: a cartolagem. Em 1975, elegeu-se presidente da Confederação Brasileira de Vôlei. Agarrou-se ao cargo por duas décadas.

Ao atrair o capital do marketing para o esporte, Nuzman colecionou importantes conquistas na modalidade. A habilidade em captar patrocínios e formar equipes vitoriosas o cacifou para chegar à chefia do COB, onde se mantém há 21 anos, a despeito do medíocre desempenho do País nas últimas Olimpíadas. Nesse ínterim, o Brasil jamais se aproximou do pelotão dos dez melhores no quadro de medalhas, objetivo traçado para a atual edição. Em Londres, figurou no longínquo 22º lugar.

O quinto mandato consecutivo de Nuzman foi conquistado em 2012. Como de hábito, não enfrentou concorrentes. A chapa única só recebeu um voto contrário, do então presidente da Confederação Brasileira de Desportos no Gelo, Erik Maleson.

À época, o dirigente tentou, em vão, articular uma candidatura de oposição. O estatuto do comitê nacional favorece a perpetuação de quem está no poder. É uma criação de Nuzman, por exemplo, uma cláusula a exigir que qualquer candidato à presidência esteja há ao menos cinco anos no COB.

Para Ana Moser, integrante da primeira equipe feminina de vôlei a conquistar medalha olímpica, em Atlanta, não faz sentido um cartola permanecer tanto tempo no comando. “Defendemos a limitação do mandato dos dirigentes a quatro anos, com uma única possibilidade de reeleição.”

Espantosamente, desde que o Brasil passou a sediar os megaeventos, nenhum ministro do Esporte buscou democratizar as federações esportivas, tampouco demonstrou constrangimento em confiar a organização dos jogos a figuras como Nuzman e Ricardo Teixeira.

Na avaliação do jornalista esportivo Juca Kfouri, a presença de Nuzman no comitê organizador da Rio 2016 representa um conflito de interesses. “Em mais de cem anos de Olimpíadas, nunca o presidente do comitê nacional assumiu, também, a liderança da organização dos Jogos”, diz Kfouri. “Ouvi vários relatos sobre empresários coagidos. A lógica é mais ou menos a seguinte: quem patrocina apenas a Rio 2016 recebe a letra do contrato; quem também financia o COB obtém regalias.”

À frente do comitê olímpico, Nuzman exerce um modelo de gestão semelhante ao do amigo João Havelange, que ditou os rumos do futebol mundial e nativo por décadas, até ser flagrado em um multimilionário esquema de corrupção desbaratado por um tribunal suíço. Amigos e familiares têm sempre preferência nos nebulosos negócios.

Em 2004, a delegação brasileira nos Jogos de Atenas usou uniformes assinados pela estilista Mônica Conceição, cunhada de Nuzman. No Pan de 2007, a Ticketronics foi selecionada para vender ingressos da competição. Por trás da empresa, estava o empresário Alexandre Accioly, sócio em outra firma do então diretor-técnico do COB, Marcus Vinícius Freire.

Em janeiro, o Ministério Público do Rio abriu um inquérito para apurar desvios de conduta do COB, em particular as relações comerciais com a Olympo Marketing e Licenciamento. Os promotores querem saber se o comitê olímpico, em parte mantido com recursos públicos, contratou a empresa mesmo sem autorização legal.

Apuram, ainda, se esses contratos geraram vantagens tributárias indevidas. A Olympo é uma sociedade entre o COB (que tem 99,98% de suas ações) e as Confederações de Esgrima e de Remo. À época, o departamento jurídico do comitê afirmou que apresentaria os esclarecimentos à Justiça.

“Após o Pan, o Tribunal de Contas da União fez um relatório demolidor sobre todas as falcatruas. Ninguém foi responsabilizado, sob a justificativa de que o Brasil era inexperiente na organização desse tipo de evento”, observa Kfouri. “Por que, então, confiaram a organização da Rio 2016 aos mesmos amadores que fizeram toda aquela lambança?”

O lucrativo negócio das Olimpíadas não atende apenas aos interesses do COB. Nos últimos anos, o Rio de Janeiro converteu-se em um gigantesco canteiro de obras tocadas por grandes empreiteiras, entre elas, Odebrecht, Andrade Gutierrez e OAS, todas na mira da Operação Lava Jato. Ao conduzir uma nova reforma urbanística catapultada pelo projeto olímpico, Paes chegou a comparar-se a Pereira Passos, prefeito responsável por um novo desenho da capital fluminense no início do século XX.

Se Haussman, urbanista preferido de Passos, ampliou as vias do centro do Rio inspirado nos bulevares parisienses da Belle Époque, Paes abriu fronteiras imobiliárias na cidade para prédios espelhados e hotéis de luxo.

Talvez a principal semelhança do projeto urbano olímpico com a reforma encampada por Passos seja o poder do trator sobre as famílias da cidade. Responsável por despejar milhares de moradores dos cortiços que buscaram refúgio nos morros cariocas, o ex-prefeito removeu cerca de 20 mil habitantes de suas casas, quando a população carioca não chegava a 1 milhão.

Em termos absolutos, Paes superou o antecessor. Segundo o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, entidade que denuncia violações ocasionadas pelos megaeventos esportivos, mais de 77 mil cariocas perderam suas casas por causa dos jogos olímpicos.

Publicado em 2015, o livro SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico, de pesquisadores da Universidade Federal Fluminense, registrou 67 mil remoções. À época da publicação da obra, Paes qualificou o estudo como um “conjunto de asneiras”. Constantemente, acusa os movimentos de inflar os números de atingidos, com a inclusão de pessoas removidas em áreas de risco ou para obras de mobilidade.

Paes costuma comparar o projeto carioca com as intervenções realizadas em Barcelona antes das Olimpíadas de 1992. A associação com o projeto catalão baseia-se na revitalização da zona portuária e na preferência por parcerias com a iniciativa privada para o desenvolvimento das obras. Embora a teoria pareça convincente, a higienização levada a cabo pela modernização do Centro do Rio e as fartas contrapartidas públicas às empreiteiras revelam a distância entre os projetos.

Erick Melo, pesquisador da Oxford Brookes University, especializado no legado de megaeventos esportivos, afirma que o projeto carioca negligenciou e alterou o plano diretor da cidade para atender a interesses privados. “Basta citar as drásticas alterações na legislação urbana vigente em algumas áreas, como a flexibilização dos limites de gabarito existentes na região portuária e no entorno do Parque Olímpico.”

Segundo a prefeitura, 57% dos 39 bilhões de reais gastos nas instalações olímpicas e nas obras de mobilidade e infraestrutura não foram custeados pelo poder público. A porcentagem é bem inferior à da Copa do Mundo, quando o Erário respondeu por mais de 80%.

Os dados de Paes escondem, porém, contrapartidas importantes para a iniciativa privada. Um exemplo é o Porto Maravilha, projeto de revitalização da zona portuária. Um consórcio formado pelas empreiteiras OAS, Odebrecht e Carioca Engenharia será o responsável pela coleta de lixo, troca de iluminação e gestão do trânsito na região. É uma espécie de bairro privatizado. Nos próximos 15 anos, estima-se que a prefeitura repassará 7,6 bilhões de reais às empreiteiras por esses serviços.

Para permitir o desenvolvimento da construção civil na região, a prefeitura comercializou os chamados Certificados de Potencial Adicional de Construção.

Adquiridos com recursos do FGTS, os Cepacs passaram a ser negociados pela Caixa Econômica Federal. A operação financeira é um dos escândalos investigados no âmbito da Lava Jato.

Fábio Cleto, ex-vice-presidente da Caixa, afirmou em delação premiada que 12 operações de grupos empresariais com aportes milionários do fundo envolveram propina a Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara.

Empresários da Carioca Engenharia, uma das três empreiteiras envolvidas no consórcio de administração do Porto Maravilha, afirmaram à Justiça que Cunha cobrou 52 milhões de reais em propina para a liberação de verbas do FGTS para o projeto de revitalização portuária.

Segundo a arquiteta Gisele Tanaka, integrante do Comitê Popular das Olimpíadas, o esforço para liberar terras para o avanço da construção civil na região não contemplou uma reurbanização das comunidades próximas, entre elas o Morro da Providência, tampouco a construção de moradias populares.

Foram prometidas 10 mil unidades de habitação popular, mas o projeto ainda não saiu do papel. “Há um discurso de que o setor privado é mais eficiente, mas há fatos curiosos, como a contratação da Comlurb, uma estatal, pelo consórcio para fazer a coleta de lixo.”

Além do Porto Maravilha, outras obras tocadas pela inciativa privada foram contempladas com relevantes contrapartidas públicas. A construção do Campo de Golfe, modalidade ausente dos Jogos Olímpicos há 112 anos, é um dos exemplos mais nítidos.

Em troca do investimento de 60 milhões de reais da empreiteira Cyrela, a prefeitura cedeu um terreno vizinho para a construção de 22 prédios de mais de 20 andares, com apartamentos avaliados entre 6 milhões e 13 milhões de reais. O Parque Olímpico, formado por estruturas temporárias, também beneficiará as empreiteiras. Em troca do investimento de 1,3 bilhão de reais, será cedido um terreno de 1 milhão de metros quadrados, 75% da área.

O esquema de segurança para a Rio 2016 preocupa especialistas. Enquanto os agentes policiais têm sofrido com atrasos de salários, as Unidades de Polícia Pacificadora convivem com a falta de recursos. A violência avança.

Com base em dados do Instituto de Segurança Pública, a Anistia Internacional alerta para um aumento expressivo no número de mortes causadas pela polícia entre abril e junho de 2016: foram 124 no período, aumento de 103% em relação ao mesmo período de 2015.

Para Átila Roque, diretor-executivo da ONG, será aprofundado o modelo militarizado de segurança pública. “Haverá um aumento no número de operações policiais nos territórios de favelas e periferias e o foco na repressão de jovens, negros e moradores de favelas.”

Autor do livro Cidades Sitiadas: O novo urbanismo militar, lançado recentemente no Brasil pela Editora Boitempo, o urbanista britânico Stephen Graham, da Universidade de Newcastle, lembra que pela primeira vez as Olimpíadas serão realizadas em uma cidade marcada por uma abissal desigualdade social, onde perto de 24% da população mora em favelas. “Por isso, as elites foram capazes de explorar essas circunstâncias para impor despejos, gentrificação e lucro em nome da ‘segurança’.”

Embora considere a importância de haver uma estratégia robusta de enfrentamento ao terrorismo internacional durante os Jogos, Graham cobra transparência para prevenir abusos. “O conceito de terrorismo é flexível, e novos poderes legais são invariavelmente dados às forças policiais como parte do ‘estado de exceção’ que envolve os Jogos”.

Aprovada por Dilma Rousseff antes de seu afastamento, a Lei Antiterror é criticada por movimentos sociais por ser vaga e permitir a juízes enquadrar manifestantes como terroristas.

A nova legislação pode amparar a repressão das manifestações contra o governo de Michel Temer. Diversos movimentos sociais prometem uma maratona de protestos no decorrer dos Jogos. Durante os preparativos para o evento, o presidente interino fugiu de inaugurações de obras onde houvesse manifestações. Aceitou participar da inauguração da linha 4 do Metrô no sábado 30, ao lado do governador eleito Luiz Fernando Pezão. Sob o solo, protegido das vaias a céu aberto.

(*) Reportagem publicada originalmente na edição 913 de CartaCapital, com o título «Maravilhosa para poucos». Assine CartaCapital.

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