«Eu já nasci militando», diz Sônia Guajajara, uma mulher indígena na linha de frente

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Sônia Guajajara nasceu Sônia Bone, na terra indígena de Araribóia, no Maranhão. Desde muito cedo entendeu que precisava lutar contra o anonimato, contra a invisibilidade dos povos indígenas. “Todo tempo eu queria encontrar um rumo, um jeito de como trazer essa história e essa vida dos povos indígenas para um conhecimento da sociedade.”

Sônia é professora do ensino fundamental, auxiliar de enfermagem, liderança indígena feminista. Mas a sua força e coragem lhe levaram a alçar voos maiores, chegando a ser a primeira mulher indígena a concorrer numa chapa à presidência da República, em 2018, aos 44 anos.

Com 15 anos, Sônia saiu de casa para estudar em Minas Gerais convidada pela Funai, e hoje é mestra em Cultura e Sociedade pelo Instituto de Humanidades, Artes e Cultura pela Universidade Federal da Bahia. Em 2001 participou do primeiro evento nacional indígena, a pós-conferência da Marcha Indígena, para discutir o Estatuto dos Povos Indígenas em Luziânia, no estado de Goiás.

Também fez história ao entregar o prêmio Moto Serra de Ouro para a senadora Kátia Abreu em defesa do Código Florestal. Em 2012, coordenou a organização do Acampamento Terra Livre na Cúpula dos Povos, contrapondo o evento mundial da Rio +20. E no ano seguinte estava à frente da Semana dos Povos Indígenas e a ocupação do plenário da Câmara e do Palácio do Planalto.

Sônia Guajajara é uma das maiores lideranças indígenas e ambientais do país. Em quase duas décadas de luta pelos direitos das populações originárias, ocupa cargos de destaque em diferentes organizações e movimentos. Entre eles, a Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (COAPIMA), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), onde é coordenadora executiva.

Sônia também se destaca no cenário internacional com voz no Conselho de Direitos Humanos da ONU, onde levou denúncias à Cúpula do Clima e ao Parlamento Europeu. No início deste ano, acompanhou a diretora Petra Costa, indicada ao Oscar de Melhor Documentário por “Democracia em Vertigem”, no almoço oferecido para os finalistas do prêmio. “É um momento muito grave da nossa história, onde exige de nós um esforço dobrado para evitarmos um novo genocídio dos povos indígenas. E por mais que nosso povo continue morrendo, está morrendo na luta. Por isso que eu digo que sempre estive na luta, na linha de frente”, destaca.

Confira a íntegra da entrevista com Sônia Guajajara.

Brasil de Fato RS – O que é ser mulher indígena no Brasil?

Sônia Guajajara – Ser mulher indígena no Brasil é você viver um eterno desafio, de fazer a luta, de ocupar os espaços, de protagonizar a própria história. Historicamente foi dito para nós que a gente não poderia ocupar determinados espaços. Por muito tempo as mulheres indígenas ficaram na invisibilidade, fazendo somente trabalhos nas aldeias, o que não deixa de ser importante, porque o trabalho que a gente exerce nas aldeias sempre foi esse papel orientador. Só que chega um momento que a gente acredita que pode fazer muito mais do que isso, que a gente pode também estar assumindo a linha de frente de todas as lutas.

Para nós é desafiador romper essa barreira do sair da aldeia para ocupar esses espaços. Imagina ocupar esses espaços aqui fora, onde há um preconceito, um racismo impregnado, que nunca se venceu, e que em algum momento a gente achou que estava conseguindo avançar… E a gente se depara agora com essa nova luta contra o racismo, contra o preconceito que está cada dia mais expresso na sociedade como um todo.

Então ser mulher indígena é esse desafio permanente de reafirmar a sua cultura, a sua identidade e principalmente o seu gênero.


Sônia é do povo Guajajara/Tentehar, que habita nas matas da Terra Indígena Arariboia, no Maranhão / Nunah Alle

BdFRS – E o que te fez sair da aldeia?

Sônia – Eu nunca sai da aldeia, na verdade eu vivo na aldeia, luto por ela, tudo que eu faço é pelas aldeias, pelos povos indígenas. E exatamente essa omissão do Estado brasileiro para atender e respeitar os direitos, os modos de vida dos povos indígenas é que traz a gente para esse mundo aqui para poder fazer as lutas que tem que ser feita para garantir a vida dos nossos povos.

BdFRS – Que momento tu iniciaste a militância?

Sônia – Eu já nasci militando. A minha vida inteira foi lutando contra esse anonimato, contra essa invisibilidade dos povos indígenas. Todo tempo eu queria encontrar um rumo, um jeito de como trazer essa história e essa vida dos povos indígenas para um conhecimento da sociedade. Porque eu sempre percebi que a história contada sobre os povos indígenas não é uma história real, e ainda no ensino fundamental os livros tratavam, e como tratam até hoje, dos povos indígenas como os povos indígenas de 1500, como povos do passado.

Isso sempre me inquietava muito porque os livros não tratavam, ou não tratam dos povos indígenas hoje, no presente. Porque não tratam dessa violência que existe contra os povos indígenas, dessa disputa por território, sendo que o Estado brasileiro tem uma Constituição federal que garante o direito territorial dos povos indígenas. Claro que esse direito é originário, é antes da Constituição, mas a Constituição reconheceu, escreveu, e esse Estado não implementa essa demarcação dos territórios indígenas.

Há um distanciamento entre a realidade dos povos indígenas, que é de muita luta, muita resistência, e o que a sociedade conhece, ou o que o sistema educacional transmite. Isso gera esse distanciamento da sociedade, e com isso continuam ainda desconhecendo a sua própria história. Porque quem não conhece a história do Brasil, não conhece a história dos povos indígenas, não conhece a si mesmo.


A minha vida inteira foi lutando contra esse anonimato, contra essa invisibilidade dos povos indígenas / Arquivo pessoal

BdFRS – É algo que acontece também quando falamos dos povos negros, a história não contada. Por que não conseguimos levar essa história para as escolas? Por que não conseguimos mudar isso?

Sônia – A própria base do plano de desenvolvimento do país, a própria base de plano econômico do país é pautada no extermínio desses povos indígenas e da população negra, porque nós sempre fomos vistos como obstáculos, como problemas. O próprio Bolsonaro quando era deputado tem uma fala forte que diz: “competente foi a cavalaria dos Estados Unidos que conseguiu exterminar todos os índios, e hoje eles não têm esse problema”.

É um pensamento totalmente criminoso, mas que vem de todo esse processo criminal de matar todo mundo que atrapalhasse o desenvolvimento. Então teve sempre essa ideia do progresso a partir da morte. Toda essa elite branca, rica, sempre no comando do país, nunca vai dar oportunidade para poder se discutir essa diversidade no Brasil, para discutir essa presença de povos, culturas e territórios diversificados.

Então, por mais que a gente faça essa luta, essa resistência, movimento indígena, movimento negro, mais a gente continua sendo invisibilizado. A nossa vida continua sendo totalmente secundarizada, os direitos sendo totalmente atacados ou retirados quando se consegue um pouco. Tudo isso contribui para que essa elite que está no poder, no comando, continue a dizer o que é que faz e o que não faz. Historicamente foi dito para nós qual era nosso lugar, nosso limite. E nós fazemos essa luta porque somos teimosos, resistentes, e não vamos aceitar esse sistema opressor, essa dominação permanente, não vamos aceitar essa imposição.

E por mais que nosso povo continue morrendo, está morrendo na luta. Por isso que eu digo que sempre estive na luta, na linha de frente. Desde quando estava na cartilha do abc, tinha essa inquietude comigo de que eu não podia ficar ali vendo, assistindo tudo isso sem reagir. O tempo foi passando, assumi o movimento indígena no estado do Maranhão por dois mandatos, depois assumi o momento indígena na Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) , depois na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). É uma história de lutas e desafios, mas também de muita coragem, porque tudo que foi dito que a gente não podia fazer, fomos rompendo essas barreiras e vamos tomando esses espaços.

Vim do território, passei pelo estado, pela Amazônia, pelo nacional, e ali assumi outro lugar, na disputa eleitoral, que ultrapassou só os limites da luta indígena. Chegamos nessa disputa pela primeira vez na história, foram 518 anos para acontecer isso, e para nós foi muito significativo. A nossa ideia era trazer a pauta indígena, a luta ambiental para o centro do debate político, mas também de reafirmar que a gente pode sim ocupar qualquer espaço, em qualquer esfera, seja na política institucional, seja nos mandatos, executivo, legislativo. Para nós foi esta reafirmação de que estamos preparados, que podemos e somos capaz de assumir qualquer espaço dentro do governo.

BdFRS – Essa eleição foi a primeira após o golpe de 2016, que tirou a presidenta Dilma e que, visivelmente, foi também um golpe misógino. E hoje pesquisas demonstram o ataque preconceituoso contra as mulheres, tanto na grande imprensa como através do “gabinete do ódio” nas redes sociais. Nesse sentido como tu avalias a participação da mulher na política e por que ainda é tão baixa no Brasil?

Sônia – Realmente é ainda um número bem pequeno de mulheres ocupando a política, tendo em vista que as mulheres têm assumido o protagonismo de diversas lutas. Mas acho que conseguimos dar um salto nos últimos anos. Apesar de ainda ter muito a ser feito para a mulher ser reconhecida na igualdade de capacidades.

Ainda hoje é lamentável a gente ver como muitas pessoas deixam de votar ou de confiar na mulher por ser mulher, porque sempre acha que é lugar para os homens. É o machismo ainda totalmente aflorado que está muito presente, e é esse machismo que fala muito mais alto na hora das escolhas, de eleger seus representantes. É uma triste realidade, mas é assim que acontece ainda. E acho que precisamos lutar muito contra esse machismo para podermos estar cada vez mais assumindo esses espaços.

Além do machismo, a disputa acaba sendo muito injusta, muito desleal na própria campanha, as pessoas votam muito por agrado, com voto pago. Eu penso que nós mulheres, quando a gente entra, a gente que vem de movimentos sociais, dessa frente de resistência, a gente que vem principalmente das esquerdas, a gente vem para fazer o diferencial. A gente vem para mudar essa forma de fazer política. E todas as mulheres que vêm desse campo, vem com esse pensamento, de mudar esta forma de fazer política. E as pessoas estão muito habituadas, acostumadas a poder dar o voto em troca de alguma coisa, e por não fazer isso, diminui ainda mais esses votos que seriam para eleger essas mulheres.


Sonia é coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil / Monika Skolimowska / Getty Images

BdFRS – E tu avalia que dentro dos partidos têm incentivo?

Sônia – Tem o incentivo, mas eu acho que ainda é muito tímido. Ainda há uma priorização dentro dos partidos por quem tem mais experiência, ou por quem tem mais, talvez, amizades. E geralmente quem tem mais experiência são os homens porque eles é que estiveram sempre, em toda história, ocupando esses lugares, nós mulheres ainda somos ainda bem poucas com essa experiência na vida política. Então nessa hora de escolher quem é a prioridade nos partidos, geralmente ainda são os homens. São poucos os partidos que trazem as mulheres para esse campo da prioridade.

Com isso, já vimos várias pesquisas que mostram ao final das eleições que muitas mulheres são utilizadas só para compor, para complementar cotas, e ai elas não recebem esse apoio, esse incentivo do partido para poder fazer a sua campanha de forma mais justa, mais digna. Precisamos ainda discutir muito isso, para as mulheres não aceitarem lançar suas candidaturas somente para complementar cotas, mas para que de fato elas sejam prioridades, tenham incentivo e tenham como fazer uma campanha igual a dos outros.

A minha candidatura com o Guilherme Boulos foi muito justa, muito compartilhada, até porque assumimos ali uma candidatura que não era uma candidatura de quem é mais ou menos. É claro que o próprio sistema político obriga você a ter que lançar a candidatura com cabeça, com vice e tal. Mas a gente adotou a co-candidatura. Isso foi assumido internamente no partido. Fizemos uma campanha totalmente compartilhada, agenda compartilhada, eu com toda autonomia de fazer a minha agenda, com o recurso que estava destinado para as mulheres. Foi uma experiência bem diferente, tanto da co-candidatura, como a forma como foram utilizados os recursos para facilitar essa autonomia na agenda.

BdFRS – Essa tem sido uma inovação também dentro do PSOL, as candidaturas coletivas para os Parlamentos. Como tu avalias essas novas formas de política?

Sônia – Essas candidaturas coletivas, para mim, é uma forma da gente influenciar na mudança do sistema político. Faz tempo que a gente tenta mudar, têm plataformas, tem a plataforma que o Instituto de Estudos Socioeconômico (INESC) lidera e que traz diversos movimentos para discutir essa mudança na política.

É claro que é muito difícil conseguir essa mudança por meio de aprovação no Congresso Nacional. Eles continuam elegendo essas grandes bancadas poderosas, a bancada ruralista, a bancada evangélica, que vem com a força das igrejas, que também traz um rebanho muito grande, a bancada dos militares. Essas bancadas estão crescendo cada vez mais e a representação da diversidade está cada vez menor. Sabemos que é difícil mudar essa forma com votação no Congresso porque essas bancadas vão querer se perpetuar nesse formato.

Mas acho que essa forma, com várias candidaturas coletivas ou com candidatura dentro do PSOL mesmo não estando filiado, é uma forma de influenciar essa mudança, porque vários outros partidos vão vendo que dá certo e também pode adotar esse formato. E com isso acho que tem um poder muito grande, uma potência pra gente provocar essa mudança.


Sonia entrega premio Motoserra de Ouro para Katia Abreu / Ivan Castaneira

BdFRS – E pra ti Sônia, qual o diferencial da mulher na política? Da mulher indígena. Saíram pesquisas que em países que mulheres estão à frente das políticas contra a pandemia, está tendo um controle maior, menos mortes, enfim um cuidado maior com a vida. Na tua opinião, têm um diferencial da participação da mulher?

Sônia – Tem sim. Cada dia está ficando mais provado isso, as mulheres vêm liderando vários processos de luta, várias frentes. A exemplo da própria saída do Cunha, as mulheres lideraram um processo grandioso naquele período pelo #ForaCunha, depois as mulheres lideraram aquele ato do #EleNão. A gente vem fortalecendo muitas lutas femininas na América Latina, com várias frentes, várias campanhas, vários temas que vêm sendo discutidos, e nisso a gente tem uma rede de mulheres na América Latina e no mundo.

E quanto a gente assume qualquer que seja o compromisso, a gente não só pensa, a gente pensa e faz concretamente as coisas, e é diferente do homem que pode até pensar, mas ele não consegue fazer as duas coisas, pensar e fazer, ele pensa e joga para as mulheres fazerem. Tem sim uma diferença muito grande quando as mulheres assumem, tanto o espaço na política quanto em qualquer outro lugar, a gente faz muita diferença. Isso é comprovado.

BdFRS – A extrema-direita tem imposto suas pautas fascistas, conservadoras. Como isso reflete nas comunidades indígenas?

Sônia – É uma preocupação muito grande. Esse conservadorismo cresce e cresce para todo lado. E a gente não está isento de todo esse processo. Hoje temos um trânsito muito grande de indígenas que vêm na cidade, que transitam na cidade, que têm acesso à comunicação, que têm mais acesso à internet, e é claro que tudo isso acaba influenciando bastante também na formação de opinião onde quer que a gente esteja.

Nós temos nesse momento, eu não sei se duas situações extremas, mas acho que estamos em um paralelo, porque ao mesmo tempo que cresce o conservadorismo e chega também nas aldeias, nós, mulheres indígenas, estamos rompendo muitas barreiras e estamos saindo desse espaço aldeia e chegando a ocupar outros espaços externos. Um exemplo grande disso foi que no ano passado realizamos a primeira Marcha das Mulheres Indígenas, que aconteceu em Brasília Foi a primeira marcha das mulheres indígenas no mundo, e que está servindo de exemplo até agora para inspirar outras mulheres, de outros continentes, que também querem fazer a sua marcha.

Fizemos a marcha para mostrar que estamos juntos, que queremos lutar junto, e que não íamos aguentar de forma alguma, silenciada, essa política genocida do governo Bolsonaro. A marcha foi uma reação a todo esse retrocesso e esse fascismo instalado.

A marcha só foi possível porque várias outras mulheres já ultrapassaram essas barreiras e estão assumindo lugares também de comando. Nós temos, na Amazônia Brasileira, a Nara Baré, que foi a primeira mulher a assumir a coordenação geral da COIAB. Foi um trabalho longo, de 10 anos. A entidade já tem 31 anos e só em 2017 conseguimos colocar uma mulher na coordenação geral.

Aqui no Maranhão, na organização indígena do nosso estado, a Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (COAPIMA), na eleição passada, em uma coordenação de quatro, colocamos três mulheres e um homem, e esse homem era o secretário, que era exatamente o papel dado a nós, mulheres, para assumir qualquer espaço nas coordenações.

E na última eleição realizada em fevereiro colocamos dois homens e duas mulheres, e as mulheres na função de coordenadora geral e vice-coordenadora. E eu assumo a coordenação geral na APIB.

Esse conjunto de mulheres assumindo vários espaços em articulação com várias outras mulheres que assumem funções importantes na educação, na saúde, na cultura e no próprio fazer comunitário, nos possibilitou realizar essa marcha, e com isso motivar muitas mulheres também a chegar mais junto, mais perto. Todas as quatro ou cinco mil mulheres que chegaram na marcha, todas elas voltaram com esse sentimento de que não seriam mais as mesmas, e que a gente precisa assumir esse comando.

Por um lado, cresce o conservadorismo, mas para nós mulheres indígenas chegou o nosso momento, e estamos na linha de frente.


«Por um lado, cresce o conservadorismo, mas para nós mulheres indígenas chegou o nosso momento, e estamos na linha de frente» / Arquivo pessoal

BdFRS – Estamos vivendo também muito retrocesso na questão de direitos conquistados pelos indígenas. E também um grande avanço da mineração nos territórios indígenas. Estamos vendo que o Bolsonaro quer entregar a Amazônia de vez, teve a MP 910 da grilagem. Como a APIB está vendo toda essa situação política na questão dos direitos dos povos indígenas?

Sônia – É realmente um momento muito traumático que estamos vivendo, talvez um dos piores momentos de toda nossa história. Porque você junta agora essa crise sanitária, essa preocupação com a pandemia que está assustando demais todo mundo, e a gente larga o que está fazendo, o combate para conter essas invasões históricas que acontecem nos territórios indígenas. E a gente para um pouco para poder olhar para a pandemia, como combater e controlar esse novo coronavírus.

Mas a gente começa a se dá conta que não dá para parar todas as outras coisas, porque os invasores não param, a bancada ruralista não para, e principalmente querem se aproveitar desse momento para fortalecer as suas alianças com todos esses setores, da indústria madeireira, do agronegócio, da mineração, para aprovar leis que beneficiam esses aliados.

Ao mesmo tempo que a gente precisa estar aqui, buscando formas, estratégias, medidas para evitar uma maior contaminação nos povos indígenas pelo coronavírus, temos que estar aqui também o tempo todo olhando esses ataques todos que estão em curso, para evitar que a soma disso seja o extermínio dos povos indígenas. Enquanto nós estamos fazendo a quarentena e orientando o isolamento social nas aldeias, nos territórios, os invasores estão trabalhando 24 horas.

E com isso a gente vê um aumento gigantesco do desmatamento. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) mostrou que da metade de março à metade de abril houve aumento de 29,9% do desmatamento geral. Quando tu faz o recorte nas terras indígenas foi um aumento de um pouco mais de 50% do desmatamento dos territórios indígenas, comparando com o mesmo período do ano passado. Na terra indígena Yanomami, em Roraima, tem 20 mil garimpeiros ali dentro.

Como fazer para retirar esses invasores? E aí claro que a preocupação é retirar esses invasores por conta mesmo da destruição que eles provocam, como também o risco de contaminação, sendo que todos eles são vetores reais de risco de contaminação para os povos indígenas. É um momento muito grave da nossa história, onde exige de nós um esforço dobrado para evitarmos um novo genocídio dos povos indígenas.

Teve a MP da grilagem, a MP 910 que tramita (quando foi realizada a entrevista a MP ainda não tinha caducado) no Congresso, foi para votação por articulação pesada tanto desse dito centrão como dessas bancadas de extrema-direita para se aprovar essa medida provisória. O que eles querem com isso? “Ah regularizar para beneficiar pequenos produtores”. Mentira. Pequenos produtores são poucos os que estão dentro desse pacote, quem está ali dentro são os grandes fazendeiros, donos do agronegócio, grandes latifundiários que estão nessas áreas, que não estão regularizadas ainda.

Daí quando eles falam em regularizar é legalizar a invasão, porque quem invadiu qualquer um desses territórios, seja território indígena de conservação, ou seja essas áreas da União que ainda não têm documentação, mas que é da União. Quem entrou até o final de 2018 nessas áreas pode requerer um documento, ou pode ter falsificado um documento e coloca essa terra como sua, e agora com isso eles apresentam e requerem um título de posse, e aí eles vão ser donos dessas terras que são terras públicas, territórios da União. As terras indígenas que estão ali são públicas, mas que nós temos o direito de usufruto exclusivo garantido na Constituição Federal. E agora eles querem pegar essas terras públicas e entregar a esses grileiros, esses invasores.

Conseguimos fazer uma articulação forte. Tanto no Congresso, com os parlamentares que estão junto na causa indígena, ambiental, como uma articulação em rede, com a comunicação nas redes sociais. A Mídia Ninja foi fundamental para dar visibilidade, ocuparam as redes com esse tema, os artistas também vieram pesado, trazendo sua mensagem. Fizemos uma articulação paralela, movimento indígena, ambientalista, artistas, comunicação para trazermos esse assunto para pressão porque senão teria aprovado naquele momento.

Podemos trazer também esse Projeto de Lei 191 que trata da autorização da mineração em territórios indígenas e que está para ser votado a qualquer momento. O Ministério de Minas e Energia já editou uma portaria, a 135 que traz a mineração como uma atividade essencial. Tem tantas outras que tramitam ali que agridem igualmente, ou que retiram igualmente todo esse controle, monitoramento, da fiscalização do meio ambiente.

BdFRS – Tu falaste em visibilidade… Antes da pandemia tu esteve em Hollywood junto com a equipe do documentário Democracia em Vertigem, e tu tens também feito denúncias no exterior sobre a situação indígena no país. Como o mundo vê isso, como foi essa experiência?

Sônia – Foi um espaço bem importante. O documentário fala da democracia e é exatamente outro risco que a gente corre hoje. Acho que é a luta de todo mundo aqui no Brasil hoje, que sonha com um país mais justo, igualitário. Poder fazer a luta pela sua causa, no que diz respeito aos direitos humanos, que é de todo mundo, direito ambiental, que poderia ser de todo mundo, direitos indígenas, direitos sociais, trabalhistas…

Mas além de fazer a luta por sua causa você tem que fazer essa luta coletiva pela democracia que é exatamente o que está em risco hoje. O Democracia em Vertigem mostra exatamente como o poder econômico atinge as democracias no mundo porque é exatamente essa articulação do poder econômico com o poder político que tenta derrubar as democracias.

E como essa democracia ou a falta dela atinge os povos indígenas e o meio ambiente? Muita gente pode pensar que não tem nada a ver, mas quando você pega as pessoas que assumem esse controle de querer derrubar as democracias, todos eles têm essa visão totalmente capitalista, de lucro, e quando se pensa o lucro ou fortalecer o capitalismo se pensa em exploração, e principalmente exploração dos recursos naturais, do meio ambiente, dos territórios indígenas, e para isso precisa flexibilizar direitos conquistados.

Dessa forma, nós somos diretamente atingidos, afetados. Então precisamos ter voz e espaço para fazer essa voz ecoar, ter um alcance em outros públicos que a gente não consegue normalmente com nossas articulações. Ali é um espaço que não é comum para nós, mas estar ali é muito importante, significativo, uma presença mostrando o perigo dessa destruição legalizada pelos poderes econômico e político e como isso afeta diretamente o modo de vida dos povos indígenas. E como o modo de vida dos povos indígenas afetados prejudicam todo o planeta, porque comprovadamente os povos indígenas, com o seu modo de vida próprio, conseguem proteger e preservar toda uma biodiversidade, tanto que nós somos hoje 5% da população mundial.

Esses 5% conseguem proteger 82% da biodiversidade viva no mundo. Se o modo de vida dos povos indígenas está ameaçado, a biodiversidade também está, e se a biodiversidade também está ameaçada não tem Oscar que se sustente. Era muito importante estar ali e conseguir fazer muitas articulações para além da cerimônia do Oscar. Foram muitos movimentos sociais que se juntaram ali, com jantar, almoço, protestos dando visibilidade, o momento era a premiação, mas como o Oscar se mantém se também não tiver uma causa humanitária, ambiental para se defender, se eles não assumirem essas lutas.

Estamos no momento de estruturar uma campanha que ficou daquele momento, artistas pela Amazônia e está se lançando um fundo financeiro e de apoio não só pela Amazônia brasileira, mas toda a Amazônia Legal que está ai nos nove países da bacia amazônica. Minha presença ali não foi só tirar fotinho com artista, foi fazer articulações para o futuro.


«Os povos indígenas, com o seu modo de vida próprio, conseguem proteger e preservar toda uma biodiversidade» / Arquivo pessoal

BdFRS – Como está a situação da pandemia nas aldeias indígenas, como estão lidando com ela?

Sônia – Está todo mundo sentindo, muita gente já sofrendo com tantas vidas perdidas, e nós indígenas estamos muito aflitos com o quanto ela está crescendo nos povos indígenas.

Eu quero trazer agora os números atualizados porque nós criamos um comitê nacional pela vida e memória indígena. Esse comitê é composto por lideranças indígenas das cinco regiões do país e por colaboradores voluntários que estão ajudando a apurar e a sistematizar esses dados. É absurdamente inaceitável o que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) está fazendo que não está contabilizando todos os óbitos indígenas, e não está dando conta de fazer como se nega a fazer mesmo com as informações levadas para ela.

Quero ressaltar duas coisas, uma é o comparativo desses dados nossos com os da SESAI, e queremos de alguma forma insistir que o estado brasileiro reconheça oficialmente esses dados levantados pelo movimento indígena, não dá para manter essa situação no anonimato como se estivesse tudo bem ou como se não tivesse óbito entre os indígenas

Números registrados pelo nosso comitê: No dia 6 de junho, 236 indígenas falecidos, 2390 infectados e são 93 povos atingidos. Pela SESAI são 79 óbitos, 1965 infectados. A preocupação maior e a situação mais grave está na Amazônia e em especial no estado do Amazonas, o estado em colapso e com maior óbito de povos indígenas.

Eles (SESAI) inicialmente se negavam a registrar os indígenas que estão em contexto urbano, que não moram nas aldeias, só que agora a gente vê que eles não estão registrando é nada, de lugar nenhum, porque mesmo quando o Distrito Sanitários Especiais Indígenas (DISEI) declara o óbito, esse caso não está sendo alimentado no boletim da SESAI. E o que a gente sabe é que o secretário da SESAI está orientando os DISEIS a não divulgarem esses dados, declarar publicamente, enquanto não for aprovado pelo jurídico da SESAI em Brasília. Isso é um absurdo sem tamanho, outras coisas que eles estão fazendo é orientando os DISEIS a não receber nenhum tipo de ajuda que venha de organizações não governamentais ou mesmo do movimento indígena. A COIAB teve uma iniciativa aqui na Amazônia de ajudar as Casas de Assistência à Saúde Indígenas (CASAIS) e com isso mandou um pequeno recurso para cada uma delas comprar Equipamento de Proteção Individual (EPIs) para os profissionais da Saúde e algumas dessas casas estavam dizendo que não podiam receber porque tinham orientação do DISEI. Agora você imagina o que representa isso, para nós só fica uma coisa, a institucionalização do genocídio indígena, negar apoio, nesse momento, dessas parcerias é totalmente inaceitável.

O povo Kokama, no Amazonas, está todo o dia pedindo socorro, chorando. O primeiro caso de indígena infectado no Amazonas foi de uma jovem de 20 anos do povo Kokama, no dia 25 de março, contaminada por um médico e isso se alastrou pelo estado inteiro.

Se o Estado brasileiro, se a SESAI quisesse poderia logo no início ter instalado barreira sanitária ali e evitado essa proliferação, mas não se fez naquele momento, não se fez até agora e continua sem vontade de fazer.

Nós do movimento indígena estamos buscando essas parcerias da sociedade civil, das entidades de apoio, de órgãos internacionais, mesmo órgãos daqui oficiais de Saúde para gente poder ver como adotar estratégias próprias porque quem tem que buscar agora essa forma de se proteger somos nós mesmos, pelos nossos esforços, porque vimos que o governo não vai assumir, não está assumindo a população de forma alguma, muito menos nós indígenas, e ele continua fazendo tudo ao contrário do que tem que ser feito. Estamos tentando uma articulação direta com os governos dos estados porque eles também não podem se omitir dessa responsabilidade.

BdFRS – E qual a tua visão pós-pandemia? Estão ocorrendo vários debates sobre modelo de desenvolvimento no mundo, porque essa pandemia não vem do nada, é fruto de um sistema de vida, de uma forma de cuidar, ou descuidar do planeta. O líder indígena Ailton Krenak fala que precisamos de menos desenvolvimento e mais envolvimento com o ser humano, com a mãe Terra…

Sônia – Com certeza, a gente vem dizendo há tempos, se o mundo não parou para escutar os alertas que a Terra vinha dando, a Terra parou o mundo para se fazer escutar. E é exatamente nesse momento que a gente está, de dizer que lições que a gente pode tirar dessa pandemia. Cresceu uma rede de solidariedade das pessoas. Muitas pessoas que acham que são autossuficientes, que estão na cidade e dependem só do que compram no supermercado, começam a entender que tem hora que você mesmo tendo dinheiro não vai ter como comprar, o que comprar. Esse momento pode ser uma oportunidade para muitas pessoas entenderem que é preciso mudar as suas formas de consumo, que quanto mais você consome desenfreadamente mais você está contribuindo com a degradação do planeta, para o fim do planeta.


«Esse momento pode ser uma oportunidade para muitas pessoas entenderem que é preciso mudar as suas formas de consumo» / Katie Maehler

As pessoas têm que repensar as suas formas de consumo, tem que entender que o individualismo precisa acabar, que temos que adotar formas coletivas de fazer as coisas, fortalecer os trabalhos em redes. E principalmente assumir a sua responsabilidade nessa luta pela mudança do modelo de desenvolvimento econômico, esse modelo precisa ser rompido urgentemente, e somente nós indígenas ou ambientalistas não vamos conseguir fazer essa pressão para essa mudança acontecer. É preciso muito mais envolvimento, engajamento. É preciso que a comunicação viabilize mais isso. É preciso que os movimentos sociais de outras causas assumam isso também como sua causa, para que a gente de fato possa considerar uma nova sociedade, mais justa, fraterna, solidária. Para isso as lutas têm que ser mais coletivas, a conscientização mais política e ecológica, entendendo que é preciso fazer outra conexão, ou uma reconexão com a mãe terra, e entender exatamente que é a mãe terra que garante o sustento e a vida no planeta.

Edição: Katia Marko

Brasil de Fato


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